Olá,
Não querendo fazer pirraça, esta crónica sai no meu primeiro dia de férias. Começa no dia da Assunção de Nossa Senhora, diz-me o Google. Como trabalhador por conta de outrem e agnóstico, só tenho a agradecer aos devotos por assegurarem esta festividade a meio do mês de Agosto, que me garantiu um dia extra de descanso. Este Estado laico que celebra institucionalmente feriados religiosos é incoerente, mas tudo é menos mau quando tenho o direito de saborear essa incoerência.
Vou descansar e partilhar tempo com quem mais amo. Vai ser exigente: vamos perdendo o hábito de estar dias inteiros juntos ao longo do ano para, num período concentrado, passarmos duas semanas a interagir uns com os outros. Será cansativo: miúdos pequenos, energia acumulada e a incessante busca pela diversão que caracteriza as crianças. Será maravilhoso: vamos construir memórias novas, ter novas brincadeiras e peripécias e testemunhar o crescimento dos dois seres que, há poucos anos, eram as minhas bolinhas que mais pareciam couves contemplativas.
Vou consciente das camadas de enorme privilégio que é poder ter duas semanas de férias conciliadas com a Sofia e proporcionar aos meus dois filhos uma rotina diferente. Penso nos trabalhadores independentes, precários, sem direito a dias de férias e consequente subsídio, explorados como falsos recibos verdes. Em quem faz trabalho não declarado “pela porta do cavalo” e é explorado na restauração, hotelaria, agricultura. Penso nos escravos modernos, onde máfias gerem a imigração de forma feudal, condenando os servos a existência iníqua para pagarem as suas passagens. Penso nos ordenados baixos que embatem de frente com a inflação e o preço surreal da habitação. Antevejo o agravamento das condições com as novas propostas de legislação laboral e flexibilização da exploração do trabalho.
Penso no poço onde deixámos a humanidade que é a Palestina: a banalização do mal da ocupação israelita, onde criminosos de guerra exterminam crianças, mulheres e homens de um povo. Penso nos outros conflitos: a invasão da Ucrânia, no Burquina Faso, Somália, Sudão, Iémen, Mianmar, Nigéria, Síria. A tez da pele de cada um destes povos determina a preocupação internacional.
Vou com o privilégio, mas ciente do mundo que me rodeia. E com a intenção de tentar fazer dele um mundo melhor; pelo exemplo que tento dar aos meus filhos, pela minha influência nas esferas onde me movo, pelas conversas e reflexões que vou tendo. Pela ideia simples de que todas as vidas são dignas e devem ser protegidas e respeitadas, e que o livre-arbítrio é um direito inalienável. Consequente, mas inalienável.
Este espaço tem sido uma forma de me expressar de forma livre, sem condicionamentos e com a transparência que consigo assumir na esfera pública. Há sempre partes de nós que gostamos que se mantenham em círculos e esferas mais privadas. Mas este Substack é um espaço que me deu, dá e dará um lugar de fala. Suprime uma das necessidades humanas mais básicas: ser visto, ser ouvido. E funde-se com uma das maravilhas da inteligência humana: o registo da memória e do pensamento. O digital é ainda o espaço de excelência para exercer a liberdade. Pouco da Internet de hoje é o que foi em tempos. Mas ainda é um espaço onde, com alguma dedicação, podemos ser livres no debate de ideias, na expressão individual e no crescimento enquanto comunidade. Quiçá, da nossa civilização. Sonhar é de borla.
Vou parar até ao final do mês. O meu próximo texto regressará na primeira sexta-feira de Setembro. Trará novidades. Uma nova imagem, uma nova estrutura — mas com a periodicidade semanal das crónicas. No essencial, nada muda. Mas serão assinalados os dois anos deste canto digital com um grito do Ipiranga: uma celebração da independência e liberdade digitais no sítio onde escrevo sobre aquilo que penso. Tudo isto sem nunca esquecer o enorme privilégio que é ter quem me leia. São mais de duzentas pessoas que se interessam pelo que escrevo e não tenho palavras para agradecer a cada uma delas.
Preparem-se para a balbúrdia que aí vem!
Até Setembro,
João
“Atrás da Escrita” é o primeiro romance do
. Terminei-o e fiquei a marinar nas ideias que andaram espraiadas pela leitura e, atentem, foram muitas. Pouco mais de uma hora escrevi ao autor a minha opinião de onde destacado “O teu humor e sátira e crítica misturam-se numa linguagem muito própria, às vezes cansativa, noutras cativante. Mas fez-me sentido a obra, no final. Percebi a ideia, principalmente de que foi o caminho da leitura que mais importou e não o porto onde atracou, finalmente”. A leitura, apesar de ser hilariante, nem sempre é fácil e obriga à reflexão crítica. É uma colagem de contos que se tornou romance numa colagem tipo kintsugi: a obra fica inteira colada com fios de ouro. O livro é crítico do mundo do livros, dos mercados e indústrias literárias. Mas também dos leitores, dos consumos, das culturas e do abandono a que relegamos o ato de ler. Já gostava do que o autor escrevia, agora ainda gosto mais.Primeiro, começou com os parágrafos iniciais do artigo do Ípsilon sobre o filme. A introdução do artigo foi de tal forma cativante que parei de ler no imediato, certo que teria que ver este filme. Depois foi o
que apenas disse “VÃO”, em maiúsculas, quase que a gritar connosco, numa emergência que só depois de ver o filme fez sentido. Sirat: consegui ver no fim-de-semana passado. Saí da sala sem saber o que tinha acontecido. Foi uma experiência que, como o Rui Pedro Tendinha disse no Expresso, o cinema “(ainda) consegue proporcionar”. Senti-me numa espécie de viagem de ayahuasca cinematográfica, onde os confins da humanidade são revelados e postos a nu. O filme é sobre um pai desesperado à procura da filha que julga ter desaparecido numa das raves do deserto de Marrocos. Perdão, o filme não é sobre: o filme é um caminho que podemos escolher atravessar de várias formas em direção ao mais primitivo que temos dentro de nós. Um mergulho no sentir e na aceitação de uma impermanência. Por isso: VÃO!
Cada vez gosto mais de te ele também. Transpiras honestidade. Como emigrante, também é muito difícil ter férias. A maior parte das pessoas não entende que ir à terrinha passa a ser uma obrigação que nos rouba possibilidades de irmos a outros lugares, muitas vezes para não ser valorizado o esforço que é por a nossa vida de lado para matar um bocadinho de saudade e, espera-se, matar as saudades que têm se nós.
pensar é fácil, ter consciência será o mais difícil. partirmos para férias cientes, assim, do nosso privilégio é essencial para saborearmos cada paisagem, cada sorriso dos nossos filhos, cada mergulho sem nunca esquecer tudo o que nos rodeia e o seu peso. abraço e obrigado pelo leitura. grande texto aqui!